quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Tempos Dylanescos.


Uma “turnê sem fim”, uma autobiografia, um documentário, um filme e uma multidão de músicos e fãs fiéis encontram Bob Dylan no momento em que este se encaminha para seu 67º aniversário. Seria este o último grande momento do mito?

Cheguei uma hora mais cedo.

Cumprimentei alguns amigos músicos e outros da época da faculdade; a ansiedade me impediu de absorver qualquer coisa da conversa. Andei pela casa de espetáculo e vi que, de cortesia, havia nas mesas uma Rolling Stone com um texto meu sobre o “bardo do rock” (imagino pertencer à segunda geração que o chama dessa forma). Logo em seguida fiquei mais calmo, senti-me, de certa forma, ambientado.

Meia hora antes do início do show, fui para meu lugar; fileira A, poltrona 1. Fiz questão de ficar o mais próximo possível do músico americano que, ao longo de mais de 45 anos de carreira, conseguiu receber, pelos mais variados motivos, o status de gênio e lenda (que sempre, prontamente, recusou-se a carregar).

Sentei e repassei mentalmente toda uma série de histórias e eventos que acumulei ao longo de todo o tempo desde que elegi o fanho como ídolo. Relembrei, principalmente, os eventos que causaram seu mais recente retorno à mídia, como o documentário “No Direction Home” de Martin Scorcese; que em minha opinião foi o estopim desta nova moda “dylanesca”.

Sentado, dou uma olhada no palco e tomo consciência que, em instantes, Dylan estará ali. Por enquanto apenas os instrumentos e a famosa estatueta do Oscar, em cima de uma caixa de som- comicamente iluminada por uma pequena lâmpada de leitura- ornam a cena.


“Eu já confessei/ Não preciso confessar novamente.”

Depois de uma horrível década de 80- e de um começo dispensável na de 90- Bob Dylan finalmente voltaria a ser aclamado pela crítica e pelos fãs em 1997 com seu álbum “Time Out Of Mind”. O disco foi produzido pelo competente Daniel Lanois (que já havia tirado o cantor do ostracismo com “Oh Mercy”, de 1989) e ganhou o Grammy em cima de concorrentes de peso como o “Ok Computer” da banda inglesa Radiohead.

Com o respeito e reputação recuperados, o- auto intulado- dono dos anos 60 poderia novamente pensar em novas, e maiores, conquistas.

Em 2001, Dylan toca via satélite, diretamente da Austrália, “Things Have Changed”, na 73º edição do Oscar e leva a estatueta pela canção; que pertence à trilha do filme “Garotos Incríveis” (Wonder Boys). Também em 2001, lança “Love And Theft”, seu 31º álbum de estúdio, que deu continuidade a seu ressurgimento e que foi recebido ainda mais entusiasticamente que seu álbum anterior.

Já em 2004, o compositor e cantor resolve contar, suas memórias. É publicado então, o primeiro volume de “Crônicas” -uma autobiografia não linear- que revela, obviamente, só os acontecimentos que o autor acha dignos de nota (não necessariamente o que os fãs e seguidores gostariam de saber). O livro foi bem recebido e eleito um dos melhores do ano pelo jornal The New York Times.

Martin Scorcese, assumido fã de rock e, cada vez mais, envolvido com documentários (vide o clássico “The Last Waltz” com a The Band e seu novo trabalho, “Shine a Light” com os Stones) resolve retratar Dylan em seu documentário de 2005, “No Direction Home”.

O documentário aborda desde sua infância em Duluth- passando por sua fase, dita de protesto- até sua antológica turnê pela Inglaterra em 1966, onde, com sua guitarra elétrica, era recebido aos gritos de “Traidor” e “Judas” pelo público que ainda esperava pelo Dylan franzino e seu violão. A repercussão foi grande, aumentando o número de venda de álbuns, livros, Dvd´s, fãs, e criando expectativa pra seu próximo álbum, que viria a sair em 2006, “Modern Times”. Este último novamente sucesso de crítica e público, considerado por muitas publicações de música como álbum do ano, iniciou a nova turnê que traria outra vez, o cantor ao Brasil.


“Eu faço meu melhor para ser como sou/ Mas todos querem que eu seja como eles são.”

Poucos minutos após as 22 horas do dia 5 de março, Dylan entra no palco com sua banda. Sem suspense, sem teatro, sem acenos, sem boa noite; como sempre ele veio fazer o que bem entende e, como sempre, faz bem.

O cantor não perde tempo e inicia o show na guitarra tocando o clássico sessentista “Leopard-Skin Pill-Box Hat”. Logo ao fim desta primeira música, uma fã invade o palco e é retirada por um segurança.

A empolgação da moça não reflete o ânimo do público. Alguns dos poucos “Vip’s especiais” presentes (aqueles que recebem os ingressos que estão mais próximos do palco, e que não estão à venda), chegam a bocejar, não sabendo ao certo o que estão fazendo ali.

Logo em seguida, o cantor emenda a famosa, porém irreconhecível à primeira vista, “It Ain’t Me, Babe”. E realmente não é ele, pelo menos não é o artista que a maioria do público esperava; certamente a voz cada vez mais rouca e a mudança nos arranjos e ritmo das músicas (bem executadas pela excelente banda) não estavam nos planos de grande parte da audiência do Via Funchal aquele dia. Desde que recusou o título de porta voz de uma geração, desde que começou a escrever sob influência dos escritores beatniks, desde que assumiu a guitarra e foi atacado pelos puristas do folk, desde que viveu recluso os anos em que gravou com a The Band, desde que aceitou Jesus (para logo depois negá-lo), desde que sua voz (que nunca foi boa) começou a deteriorar nos anos 90; Bob Dylan, repetidamente nunca foi o que os outros esperavam dele.

O show segue, e logo o músico vai para o teclado e lá permanece até o fim do espetáculo. Sonoridades à la Chuck Berry e poses à la Chaplin; o senhor de 66 anos no teclado se endireita de modo brusco, repete o mesmo gesto várias vezes, sorri e faz careta, com um vigor que o corpo sofre para acompanhar.

O repertório de 17 canções é dividido, quase igualmente, entre as músicas de seus dois últimos álbuns e as dos anos 60. Na última música do show, logo após uma nova invasão da mesma fã, um momento de catarse com todos em pé cantando “Like a Rolling Stone”. Admito que atrapalhei o Belchior (que estava sentado comportado atrás de mim) e incomodei os seguranças quando me levantei nos primeiros acordes e perdi o resto da voz cantando How does it feeeeeeeeeeeeel?. No entanto, pude logo ver seu sorriso surgir debaixo do bigodão quando alguém gritou no fim da canção o obrigatório “toca Raul!” (Marcelo Nova estava sentado um pouco mais para trás, teria sido ele?).

Após um pequeno intervalo, se seguiu o bis com “Thunder On The Mountain” e “All Along The Watchtower” na versão imortalizada por Jimi Hendrix.

Para minha alegria (sempre preferi a fase elétrica), e para tristeza do indefectível fã, senador Suplicy, nada de “Blowin’ In The Wind”. Conversei com o simpático político, após sua saída do backstage, que afirmou ter gostado do show, apesar da ausência do hit. “A vibração do público foi ótima. Se eu fosse diretor de uma grande empresa, certamente tentaria fazer um show gratuito para o povo, daria este presente.”. Alguns segundos depois de nosso breve papo foi engolido por uma massa de pessoas cantando a ausente canção para ele. Se o senador pudesse ter acompanhado até o fim o show do dia seguinte (“só poderei ver as primeiras músicas amanhã, pois tenho que pegar um avião para Boston”) teria ouvido sua tão amada canção no bis de um espetáculo completamente diferente do dia anterior. Dylan, além de mudar sua gravata de preto pra roxo, mudou também nove das 17 canções de sua setlist de um dia para o outro; comprovando novamente seu lendário gosto pela mudança e, para os que se ligam em astrologia, seu caráter geminiano.

Reside talvez nessa capacidade de mudança, em suas muitas faces, o segredo de sua longevidade e influência.

“Mais cedo ou mais tarde, um de nós saberá/ Que eu realmente tentei ficar próximo de você.”

Ao longo do período de mais de quatro décadas que o “bardo” está em atividade, incontáveis músicos gravaram suas canções ou, ao menos, admitiram ser influenciados por sua música. Entre os grandes nomes do rock e da música popular internacional que gravaram canções de Dylan estão Jimi Hendrix, Rolling Stones, Eric Clapton, Roger Waters, Johnny Cash, Stevie Wonder e Elvis Presley (sim, o rei do tem uma versão de “Tomorrow Is A Long Time”). Alguns, não satisfeitos em apenas gravar, compuseram músicas em sua homenagem, caso de David Bowie com “Song For Bob Dylan” e de Syd Barrett, primeiro líder da banda Pink Floyd, com o seu divertido “Bob Dylan Blues”.

No Brasil, além de Caetano Veloso com sua versão de “Jokerman”, temos Zé Ramalho com sua versão abrasileirada de “Knockin' on Heaven's Door” (Batendo na porta do céu) e com um projeto, ainda em fase embrionária, com a gravadora EMI para um álbum inteiro só com versões em português das músicas do cantor americano. Não podemos esquecer, também, da confissão de Raul Seixas em “Eu também vou reclamar”: Que eu já passei por Elvis Presley/Imitei Mr. Bob Dylan.

A “influência dylanesca” já virou quase um item obrigatório no currículo dos novos artistas. Cresce a cada dia a safra de novas bandas, tanto internacionais quanto nacionais, ditas, influenciados pelo músico. Do ótimo cantor texano Devendra Banhart até os maquiados do Tennessee, Kings Of Leon; de Marc Ronson até Cat Power; de Yo La Tengo até Madeleine Peyroux; de Diego de Moraes até Ana Cañas; dos promissores meninos do Vanguart até o novo fruto/alvo do “hype” Mallu Magalhães, todos se declaram alunos do velho mestre de Minnesota.

A influência, por vezes, vem por meio da moda, deixando a música em segundo plano. Muitos se valem apenas do imagético criado pelo cantor, seja por meio do cabelo armado, de coletes, paletós justos ou Raybans Wayfarers (que Dylan sempre usou e que voltaram a ser fabricados recentemente). Em janeiro a revista Esquire noticiou o fato, publicando um ensaio fotográfico sobre a volta do estilo Bob Dylan de se vestir.

Existem, é claro, os que levam a “referência” mais a sério. Quando Zé Mazzei, baixista da banda Forgotten Boys, conheceu Hélio Flanders, vocalista da banda Vanguart em um show em Cuiabá surgiu a idéia de um projeto onde tocariam suas músicas favoritas de Dylan juntos. O primeiro show ocorreu no final de fevereiro com a presença da iniciante Mallu Magalhães e foi batizado, provisoriamente, de “Hélio, Zé and Mallu” (algo na linha de Peter, Paul and Mary). Com um repertório bem selecionado, sem priorizar os hits óbvios, o projeto tem tudo pra agradar os “iniciados”.

Finalmente, para deixar claro que a influência de Dylan não se limita somente à música, ou à moda é interessante ver o que o papa Bento 16 pensa desse tipo de “profeta”. Em seu livro “João Paulo 2º, meu amado predecessor”, lançado em março de 2007, Bento conta que “estava e ainda está” em desacordo com o fato de que um personagem como o cantor de rock Bob Dylan se apresentasse para o sumo pontífice em um concerto organizado em 1997, à margem do congresso eucarístico italiano celebrado em Bolonha. João Paulo II, por sua vez, não deu ouvido, assistiu ao show e teve um aumento considerável de sua popularidade entre os jovens.

“Mas eu não estou lá/ Eu fui embora.”

Pegando carona na passagem do cantor pelo país, entrou em cartaz, no final do mês passado, “Não estou lá” (I’m not there) de Todd Haynes. O filme pretende abordar as mais diversas facetas e fases do cantor por meio da interpretação de seis atores diferentes.

O jovem Marcus Carl Franklin interpreta o Dylan folk e mentiroso em início de carreira, ainda muito influenciado pela música de Woody Guthrie. Richard Gere interpreta o cantor em sua fase de reclusão. Ben Wisham interpreta o Dylan poeta que, evasivamente, se auto-intitula Arthur Rimbaud. Cabe a Christian Bale sua fase de protesto e sua fase religiosa. Heather Ledger encarna o Dylan pai de família, atormentado pela imprensa e pelo fim de seu casamento. E, finalmente, com uma indicação ao Oscar pela sua interpretação, Cate Blanchett, representa o Dylan em sua fase elétrica, durante sua turnê na Inglaterra em 1966.

Os melhores momentos do filme vêm do personagem de Blanchett; vários trechos de coletivas de imprensa, a relação de Dylan com o poeta Allen Ginsberg, o uso de drogas em excesso e seus problemas com a crítica e com os fãs neste momento fronteiriço da carreira do cantor, e da música do século XX. Destaque especial para uma cena rápida e engraçada da relação de Dylan com os Beatles; perfeitamente sintetizada por uma frase de Eduardo Bueno no seu posfácio da edição nacional de “Crônicas”: “Enquanto John e Paul estavam querendo pegar na mão de alguma garota, Dylan já estava deixando o quarto dela, levando os cobertores, deixando-a só com suas pílulas, sua anfetamina e sua dor, como se ela já fosse mulher feita.”.

Encontrei, por sinal, o jornalista e escritor (pra mim, na verdade, ele sempre será o tradutor de On the Road) no show do dia 6 e pude, além de discutir a setlist, conversar sobre este novo retorno de Bob Dylan ao centro das atenções.

Seria este o último grande momento de Dylan? Em recente entrevista a Jonathan Lethem, o cantor afirmou estar “apenas no meio” de sua carreira. Só nos resta esperar.

*Versão bruta de reportagem gonzo encomendada por pequena revista. não chegou a ver a luz do dia. As fotos foram tiradas por mim.

Nenhum comentário: