Vladímir Maiakóvski escreveu O percevejo em 1928, sob a égide do asséptico período stalinista. A peça fazia troça do aburguesamento nascido da Nova Política Econômica, estabelecida por Lênin em 1921, e da unilateralidade da arte destes novos tempos; esvaziados que estavam de ideais revolucionários.
Prissípkin, ex-operário, ex-membro do partido e atualmente noivo, muda seu nome para Pierre Skrípkin a fim de casar-se com Elzevira Renaissance, manicure filha da rica cabeleireira Rosália Pávlovna. Com o dinheiro de “mãezinha” Renaissance, Prissípkin e seu amigo Baian (um ex-proprietário) compram toda a sorte de produtos vermelhos para a realização do casamento “eminentemente vermelho”.
Depois de um acidente que o deixou 50 anos congelado, Prissípkin volta à vida em um mundo onde o comunismo está globalmente instaurado e onde um seresteiro como ele tornou-se um grave elemento de subversão. Maiakóvski passava então por uma séria desilusão com o regime, retratando em sua peça o período em que vivia e também os anos que se seguiriam - após seu suicídio, em 1930, a situação se agravaria ainda mais com a implementação do “Realismo Socialista”.
O poeta que se tornou um dos emblemas da Revolução de Outubro começava a tornar-se ciente da trajetória e das consequências vividas pela arte desde então. Como avalia Boris Schnaiderman no prefácio da antologia Poesia russa moderna (Perspectiva, 2001), “A grande convulsão social requeria uma linguagem desvinculada dos padrões herdados de uma época de tranquilidade burguesa. A poesia das praças e dos comícios não podia falar a linguagem dos salões e das academias”. Maiakóvski, desde que deflagrara em 1912 o Futurismo russo, encarnava esta voz.
Em seu texto Eu mesmo ele deixaria registrado:
“1917 Outubro - Aceitar ou não aceitar? Semelhante pergunta não existia para mim (e para os demais moscovitas). A minha revolução. Fui ao Smólni. Trabalhei. Tudo o que era preciso”.
A recepção de seu Percevejo, no entanto, ocorreu em meio a dissonâncias. Críticas davam conta que o autor não havia abordado a luta de classes em sua peça, tampouco a vida da classe trabalhadora e a de seu personagem principal em meio ao coletivo, “na atividade social”. A obra do poeta que vinha sendo acusada de “incompreensível para as massas” carregava agora o rótulo de espírito anti-soviético.
A peça causou séria discussão sobre a necessidade da sátira. Os membros da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários) consideravam que a prática traria prejuízo ao Estado Soviético - havia a crença que ela não poderia existir na ditadura do proletariado, pois fatalmente atingiria o Estado e a sociedade. Meyerhold, grande nome do teatro russo e diretor da peça, em entrevista ao jornal Vetchernaia Moskva tenta em vão repelir as críticas dizendo que a força do texto está contida na ideologia verdadeiramente soviética da peça (mais tarde Meyerhold viria a ser mais uma vítima do Terror stalinista, sendo preso e torturado até a morte).
É tentadora a analogia traçada com facilidade entre o desfecho da obra e o do próprio Maiakóvski. Prissípkin vira atração de um Zoológico; ao ver tantos semelhantes a observá-lo, questiona porque está sozinho em sua jaula. Ora, graças à análise de “sinais miméticos” provou-se que ele não era um Homo sapiens, e sim um Philistaeus vulgaris. Maiakóvski, apesar de seus esforços, passou seus últimos anos de vida isolado entre seus contemporâneos. Chegou a filiar-se a RAPP como tentativa de levar sua arte adiante, mas ainda assim em sua última apresentação pública (em 9 de abril de 1930, cinco dias antes de seu suicídio) foi novamente desacreditado pelo público.
No Brasil, Luís Antonio Martinez Corrêa pretendia encenar O percevejo em 1974, mas teve que esperar até 1981 por causa da proibição da censura. A presente edição, contempla a tradução feita por ele e cotejada por Boris Schnaiderman.
*[publicada no Correio Braziliense - 26 de setembro de 2009]
Nenhum comentário:
Postar um comentário