Depois de mais de oito anos de trabalho de pesquisa, o jornalista Carlos Marcelo compõe uma das mais completas biografias do cantor Renato Russo, um panorama sobre a gênese de Brasília e a retomada de mais de 40 anos de música brasileira – e internacional- neste seu segundo livro.
O ponto de partida é controverso show de 1988 no estádio Mané Garrincha, para logo em seguida voltar-se à década de 60; ao desenvolvimento de Renato e da Legião; e seguir o ídolo até seus últimos dias. A vida do cantor surge aqui análoga à de Brasília, as duas existências- que viriam se cruzar na adolescência- são retratadas com escrita atenta e agradável. Na capital recém-inaugurada, Aldous Huxley passeia com Gilberto Freyre, comentando sobre a apoteose de Niemeyer enquanto o funcionário público Ney de Souza Pereira dá os primeiros passos para tornar-se Ney Matogrosso. Já Renato Manfredini Júnior vai aos poucos descobrindo o mundo por meio do cinema, da música e da escrita. Enquanto Chico Buarque engendra Julinho da Adelaide para burlar os censores, Renato descobre os encantos e tenta entender porque se sente tão próximo de Bob Dylan. O livro deve interessar tanto aos curiosos quanto aos iniciados, com sua qualidade de registro histórico, sua riqueza de informações e seus alegres detalhes- quem imaginaria Renato Russo aos quatorze, ouvindo Emerson, Lake & Palmer?
Entrevista com Carlos Marcelo
Seu livro chama-se "Renato Russo- filho da revolução", e justamente o paralelo que se traça entre o crescimento de Renato e o de Brasília- bem como os eventos e conflitos lá ocorridos- é um dos mais ricos do livro. A idéia original já contemplava este formato ou ele foi ganhando importância ao longo do projeto?
A primeira idéia era reconstituir um período crucial da vida do Renato Russo, quando ele era apenas Renato Manfredini Júnior, mais um jovem que saiu do Rio de Janeiro para morar na nova capital do país por conta da transferência dos pais. Sempre me chamou atenção o fato de Renato ter nascido no mesmo ano de Brasília, 1960, e ter chegado à cidade treze anos depois; ou seja, ambos passaram pela adolescência, tradicionamente uma fase de grandes descobertas e confrontos, no mesmo período de existência. Ao traçar, logo no início, o paralelo com a cidade, ficou mais fácil delimitar o território a ser criado para inserir o personagem nesse cenário, para usar uma imagem do escritor Alan Pauls ao falar do seu caudaloso romance O Passado. Com, óbvio, uma diferença básica: o argentino fez uma história de ficção; já o meu propósito sempre foi o de escrever um livro-reportagem não apenas sobre o líder de uma banda de rock, mas sobre a sua relação com o momento histórico que atravessava o Brasil. Daí o fato de o primeiro capítulo ser bem mais longo e um pouco mais rebuscado do que os outros subsequentes e, propositalmente, ter períodos e parágrafos igualmente extensos. É o momento "rock progressivo" do livro...
Lendo o livro é impossível não notar a riqueza de detalhes, desde os filmes que Renato via na infância até as bandas de rock progressivo que o influenciavam na adolescência, quanto tempo de pesquisa foi necessário antes de você começar a redigir?
Como, por motivos profissionais, não tinha condições de me dedicar exclusivamente ao projeto, foram sete anos de pesquisas, entrevistas e checagens, mais um ano e meio para escrever (e reescrever, e reescrever, e reescrever...) as 416 páginas. Nesse período, algumas descobertas foram particularmente recompensadoras, como a localização, consulta e reprodução dos processos das músicas de Renato que foram alvo da Divisão de Censura de Diversões Públicas. Entre eles, um datado de 1981, ainda dos tempos de Aborto Elétrico, com o veto da música "Heroína". E foi no meio dessa jornada que tomei a mais complicada das decisões: narrar em tempo presente, intercalando o cotidiano do Renato (e de outros jovens, todos à época anônimos) com os fatos que marcaram a história da cidade e do país. Isso deu trabalho: foi como montar um gigantesco quebra-cabeças sem saber de antemão quantas peças serão necessárias para acabar a brincadeira. Tudo porque intuí que o narrador da história deveria ser onipresente, mas jamais onisciente - não há, no corpo do texto, nenhuma explicação do tipo "e, por ter lido nos jornais sobre um famoso grupo terrorista alemão, ele resolveu batizar anos depois uma de suas músicas com o nome de Baader-Meinhof Blues". Resolvi me abster de análises e de juízos de valor para confiar na inteligência e na sensibilidade do leitor. Acho que ele é capaz de identificar na citação do trecho de discurso do senador Francelino Pereira, à época presidente da Arena, a origem da frase "Que país é este", para citar o exemplo mais óbvio, e outros menos conhecidos, como o fato de Sergio Britto dos Titãs também ter morado em Brasília e ser um "filho da revolução" (e, a partir da história dele e de seu pai, ser possível traçar um rápido paralelo com a ditadura chilena) ou o processo de transformação, na capital recém-inaugurada, do funcionário público Ney de Souza Pereira no cantor Ney Matogrosso.
Na condição de criador do livro e fã da Legião Urbana, qual passagem ou motivo principal pelo qual você acha que os fãs do grupo devem lê-lo?
O acesso permitido pela família Manfredini ao apartamento de Renato em Ipanema, onde estão guardados dezenas de manuscritos do cantor, entre eles letras inéditas e rascunhos de diversas fases de sua vida, fez grande diferença e trouxe para o livro uma riqueza iconográfica que, acredito, seja de interesse dos fãs. Há, por exemplo, a publicação de uma letra, "Setor de Diversões Sul", na qual Renato invoca dois de seus personagens mais conhecidos - Eduardo e Mônica - para tentar resgatá-lo da depressão na área mais barra-pesada do Plano Piloto de Brasília. A reconstituição da apresentação da Legião no Mané Garrincha em 1988, talvez o show mais conturbado da história do rock brasileiro, com a reprodução integral das intervenções de Renato e das reações do público também podem saciar a curiosidade de quem não viveu aquela época.
Mas acredito que o livro pode interessar não só aos fãs da Legião Urbana mas aos que se interessam pela história recente da música popular brasileira e do próprio país. Porque, antes de tudo, tento enxergar "Renato Russo - o Filho da Revolução" como um livro sobre utopias - de uma nova ordem na música brasileira, de uma nova capital, de um novo país -, algumas realizações e muitas desilusões.
*[publicada na Rolling Stone de junho de 2009]
*[publicada na Rolling Stone de junho de 2009]
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